12.4.05

Fumo, droga consentida, ou o cinismo dos governos

Fui fumador durante quase quarenta anos. Não fumava como se disso dependesse a vida, mas tinha mais um vício de acender e deixar queimar os cigarros, que a maioria das vezes ardiam nos cinzeiros. Tudo fica empestado, desde o ambiente envolvente às minhas roupas, mãos, boca e cabelo. E eu, como a maioria dos fumadores, não me apercebia disso, achava mesmo que os outros eram uns exagerados e uns fundamentalistas antitabágicos. Hoje, verifico que era um acto condicionado e porventura uma demonstração de fraqueza mental muito condenável. Passei a respirar bem melhor, sem aquela tosse de fazer sentir os pulmões desfazerem-se e principalmente, passei a abominar o cheiro do tabaco, afastando-me e repelindo quem dele ainda faz uso. E ao beijar as faces de amigas fumadoras passei a sentir e abominar o odor que nunca antes experimentara. Tem valido a pena e aconselho os meus amigos a libertarem-se e sentirem-se outros.

Mas não era só sobre as vantagens de me ter tornado não fumador, que estou escrevendo. Sendo o tabaco uma droga legal, e que os estados tributam com pesadas taxas, acaba por ser um produto apetecido pelas redes de contrabando. Mas o mesmo estado que proíbe a publicidade, e que cada vez mais aumenta os impostos aos fumadores, e que obriga a identificar os malefícios do tabaco em letras garrafais nas embalagens, é um estado cínico que tira uma vantagem económica deste negócio e depois diz que gasta muito dinheiro a tratar os doentes vitimas do tabaco. Em que ficamos afinal?. Sei que o problema é de difícil resolução, mas algumas outras medidas poderiam ser tomadas, além da repressão aos fumadores, guetizando-os nos locais de trabalho e locais públicos. Promovendo, por exemplo, mais facilidade na obtenção de consultas anti-tabájicas, reduzindo impostos dos medicamentos e produtos para esse tratamento por forma tornar mais acessível e económico e poder ser assim mais abrangente a muitos candidatos a não fumadores. Esperar mais de dois meses por uma ajuda médica, e ainda gastar bastante dinheiro nos medicamentos, não é forma de incentivar alguém.
Mas os governos são um poço de cinismo e olham apenas a perspectiva economicista das empresas de tabaco, e dos proveitos, para o estado, que elas podem dar.
Até quando ?

6.4.05

O Morse do chefe Belchior

Ao lêr Gabriel García Márquez no livro “Memória das minhas putas tristes” diz o autor que "fora durante quarenta anos o inflacionador de telegramas de El Diário de la Paz, que consistia em em reconstruir em prosa indígena as noticias do mundo que apanhávam pelo ar no espaço sideral pelas ondas curtas ou pelo código morse". Esta declaração deste escritor nascido no seio do jornalismo fez-me recordar um episódio passado há mais de cinquenta anos, em Angola, na cidade de Nova Lisboa, hoje Huambo

Nasci no Lubango, no sul de Angola, por capricho de minha mãe que quiz ter o seu primeiro filho, junto e com o apoio dos pais, meus avós, que viviam em Sá da Bandeira, e acabei depois crescendo e vivendo em Nova Lisboa onde fui concebido.

A 17 de Julho de 1950 meu pai faleceu num acidente de aviação, quando um avião DC3 das linhas aéreas de Angola se despenhou na Serra do Bocoio a umas dezenas de quilómetros do Lobito para onde o meu pai se dirigia. Este episódio alterou profundamente a vida de minha mãe, viúva muito jovem, e com dois filhos de muito tenra idade, com um e com três anos. A nossa vida passou por um grande apoio familiar de parte dos meus tios Quinhas e Zé Kamdimba, cedendo à minha mãe, uma pequena casa no rés-do chão no prédio da sua casa, e onde passámos a viver. Sempre teremos esta dívida de gratidão para com estas excelentes pessoas.
Minha adorada mãe foi então procurar trabalho, concorrendo para os correios e teve de ir à capital, Luanda, tomar posse do lugar de funcionário de correios. Era assim naquele tempo. A descentralização era desconhecida, e tudo estava concentrado e se tratava na capital da colónia. Para se resolver algum assunto lá se teria de pedir ao Tio Agostinho Marques Trindade, que era Engenheiro da Bricom, pessoa muito conhecida em Luanda, uma figura volumosa, com voz tonitroante e com uns olhos grandes, muito amigo de seu amigo, e que acabava sempre conseguir abrir ou ajudar a abrir as portas. E assim, a Lilita, nome familiar de minha mãe, começou vendendo selos e fazendo registos de cartas na velha estação dos correios no jardim da alta. Ali acabou conhecendo um colega de profissão, e três anos passados sobre a morte de meu pai, consorciaram-se e fomos viver para uma outra casa no bairro da Calumanda durante um ano, até que ficasse vaga a casa dos Correios, que o Belchior Mendes, era esse seu nome, tinha direito por entretanto ter sido nomeado chefe da estação dos correios. Na Calumanda nasceu a minha querida irmã Belinha diminuitivo de Anabela.
O nosso padrasto, era chamado por nós de padrinho, e era um excelente radiotelegrafista e naquele tempo as notícias eram recebidas do modo que refere Gabriel García Márquez, letra a letra, descodificando o código morse que era transmitido pela Press Lusitanea a partir de Portugal. E os textos eram batidos à máquina de escrever Remington, em papel especialmente desenhado para o efeito. Levava cerca de uma hora a receber todo o serviço, que depois era disponibilizado ao Jornal do Planalto e ao Rádio Clube do Huambo. Aquela transmissão era feita a horários certos, duas ou três vezes por dia, de modo a permitir que, se existisse qualquer atrazo, ou dificuldade de propagação, o texto integral era recebido.

Eu que tinha na altura os meus sete anos acompanhava estes trabalhos, principalmente aos domingos, quando às sete da manha, o Chefe como era carinhosamente por nós chamado, ia para a estação de telecomunicações dos correios, sintonizava o sinal num enorme receptor da RCA com duas enormes rodas de quadrante com umas escalas em quilociclos – mais tarde vim a saber que se chamavam de VFO – e o sinal jorrava pelos auscultadores.

Anos mais tarde, aí por volta dos meus dezasseis anos colaborava nos serviços técnicos do Rádio Clube de Malange, como operador de técnica, e recebemos uns receptores da marca Hamarlund, para fazer o trabalho de “inflaccionador” de notícias como descreve GGM. E era mesmo verdade, pois muitos acontecimentos eram aumentados na sua dimensão e espectacularidade por forma a gerar mais emoção aos radiouvintes.

E foi aí que o bicho das telecomunicações me começou a “morder”, e ainda hoje, continuo dedicando muito tempo ao amadorismo de rádio. E foi o chefe o responsável.






O cú e as calças, uma relação de proximidade

O meu tio Humberto era uma simpática figura de gargalhada fácil e de descontração. Muito conhecido em Angola onde trabalhava nos caminhos de ferro, como engenheiro inspector, foi sempre considerado pelos seus pares um excelente técnico em cálculo de esforço. Era um grande conversador e dotado de uma sensibilidade para a música, assobiando sempre as suas árias preferidas. Era pouco discreto nas suas explosivas gargalhadas que o identificavam de imediato, e contagiava quem o ouvia. Enfim, um homem bem disposto para a vida e tirando dela partido em tudo o que podia. Alguns na família diziam que ele tinha pancada, mas outros riam-se muito com o tio.
São muito conhecidos de toda a família episódios com o tio Humberto figura que com o irmão, o nosso tio Agostinho Marques Trindade, faziam um núcleo de membros da família, à volta do qual giravam muitas histórias de descontração, e que dezenas de anos após desaparecerem ainda a familia os recorda e se ri.
Durante a visita do Governador Geral de Angola o Agapito ao porto do Lobito, ele fazia parte da comitiva que acompanhava aquele dirigente, não só porque se tratava de uma obra dos Portos e Caminhos de Ferro, mas porque o Agapito fazia questão de que o Humberto, que conhecia há muito, estivesse presente.
A certo momento, num comentário sobre a obra que estavam visitando, foi respondido pelo Humberto de forma lateral, o que levou o Agapito a perguntar-lhe. Óh Humberto que tem a ver o cú com as calças. Esta era a forma do Agapito lidar com as situações. Frontal e directo. Mas o Humberto, que não lhe ficava atrás, por isso mesmo até eram amigos, respondeu-lhe, mantendo o respeito pelo governante, já que havia mais pessoas por perto, "que a relação era de proximidade senhor governador". Desmancharam-se todos a rir e o episódio passou à história.

5.4.05

Papa à janela

Uma longa ausência destes escritos devido a afazeres que me ocuparam bastante, mas o regresso é sempre um regresso e, esperemos, uma renovação. Estamos em tempo de mudanças na Igreja, dificil tarefa de suceder a uma personalidade que marcou os últimos quase trinta anos.
Sempre fui um fã deste Papa João Paulo II. Habituei-me a acompanhar as suas visitas em todo o mundo, em especial a Portugal onde veio três ou quatro vezes, sempre em banhos de multidão de que sobressaíam sempre os jovens. Um Papa que tomou algumas medidas que marcaram o seu pontificado, criticadas por uns e apoiadas por outros, mas que revelam a sempre corajosa e assumida vida de luta deste pai Igreja. O mais significativo gesto foi a aproximação a outras confissões, sempre muito falada mas nunca tentada, e que cortou algumas barreiras, acabando por transformar esta relação em algo que pode ser muito importante e imparável na história da humanidade.
Numa das visitas a Portugal, Sua Santidade, na qualidade de convidado oficial, ficou instalado no Palácio Nacional de Queluz. A visita do Papa foi sempre uma enchente de pessoas, tornando impossível à maioria das pessoas vê-lo de perto, tendo optado por acompanhar todos os actos através da televisão.
Mas o apelo a tentar ver directamente este pastor da igreja, ao fim de tarde de um domingo,acabei levando a minha família até ao Palácio de Queluz, na tentativa de conseguir vê-lo. Como eu mais umas cinquenta pessoas ansiavam o mesmo. Ouviu-se um côro de vozes gritando "Papa à janela" na esperança de que Sua Santidade acorresse àquele chamamento. E eis que surpreendentemente, João Paulo II, quebrando todo o protocolo, e mais uma vez para estar junto das pessoas, assumou a uma das janelas e respondeu às palmas, e deu-nos a sua bênção.
Vimos o Papa a uns escasso dez metros de distância e esta imagem de serenidade e tranquilidade, ainda hoje me acompanha e me emociona de uma forma muito profunda. Com aquele gesto demonstrou o seu carisma e proximidade às pessoas, e isso foi uma das características deste Papa.
Nunca te esqueceremos João Paulo II.